Ao escritor e jornalista Ta-Nehisi Coates foi dado uma tarefa bem diferente do que estava acostumado. A Marvel Comics o contratou para escrever uma nova série para o Pantera Negra, após vários anos de títulos irregulares e na véspera de sua estreia no cinema. O resultado foi um trabalho aclamado que segue ganhando boas críticas em arcos com o herói de Wakanda. O sucesso levou Coates para um novo desafio, reiniciar a série do Capitão América, depois, dos eventos que lançaram Steve Rogers como um déspota fascista na saga Império Secreto.
A leitura da primeira edição do título garante um Coates mais focado do que sua estreia em Pantera Negra – Uma nação sobre seus pés e com uma equipe com Leinil Francis Yu e seu estilo cinematográfico de desenhar, a arte-final de Gerry Alanguilan e as cores de Sunny Gho, dá a esta edição de estreia uma perfeita arrumação de casa em relação ao personagem. As marcas do Império Secreto, com Steve Rogers como o líder supremo da Hydra, são problematizadas em suas consequências. Coates aborda as repercussões na reputação de Steve e no mundo em geral, tecendo linhas narrativas do atual clima político norte-americano, da violência armada e da questão de “O que significa ser um americano em 2018?”.
O arco Inverno na América mergulha nas implicações políticas e sutilezas afins, em uma narrativa cheia de ação, mas com momentos reflexivos do personagem. Um exército de Bazucas, supervilão metade cyborg, metade supersoldado, obcecado pelo Vietnã, criado por Frank Miller em Demolidor, ataca um protesto entre “nostálgicos” da Hydra e manifestantes antifascistas. Capitão América, Bucky Barnes e uma envelhecida Sharon Carter enfrentam o grupo e partem a resolver quem está por trás daqueles cyborgs.
O confronto com os bazucas centra a ação deste primeiro número. Mas há momentos que merecem destaque como o assessor para a defesa da Presidência, General Thaddeus Ross, cujo diálogo reflete muito o que ocorre nos EUA, após a queda da Hydra. Entre as conversas com Ross, cenas íntimas com Sharon e uns monólogos como textos de apoio, a narrativa avança de forma lenta, o que parece ser marca do roteirista, em referência a outros trabalhos. No entanto, ir devagar não significa que o autor não sabe para onde está indo, está construindo um bom quebra-cabeça como proposta.
O primeiro número desta nova série do Capitão América não há só ação, como podemos ver. Temos uma profunda reflexão sobre o poder, a corrupção e o que tudo isso significa dentro do ” sonho americano”. Um sonho que está se tornando pesadelo, a Hydra anteriormente conquistou o país, servindo da imagem de Steve Rogers. Ao ser derrotada, a a corporação deixou partidários e ninguém confia em ninguém e confia menos no Capitão América. É o mundo da pós-verdade e das notícias falsas, um mundo onde a história oficial prevalece sobre a história verdadeira e onde muitos se perguntam qual é o caminho a seguir e qual é o seu lugar neste novo mundo. E Coates transforma o icônico personagem num catalizador desse posicionamento político e social que os EUA vive hoje, como um atirador na linha de frente no “garoto novo em Washington”, a quem ele não menciona diretamente, mas todos sabemos quem ele é.
A arte está nas mãos do filipino Yu, que melhora a cada ano. Um dos poucos desenhistas que hoje tem um estilo próprio identificável e é capaz de narrar com cenas de ação e diálogos. Destaca-se sobretudo na representação dos rostos, onde enaltece a envelhecida Sharon Carter, com suas rugas após anos de luta. Seu traço transmite a seriedade que Coates imprime a seus roteiros, onde não há espaço para frivolidades ou piadas. Uma outra menção são as capas de Alex Ross, que faz com que seja uma daquelas séries que vale a pena colecionar.
Em resumo, a série Capitão América merece ser acompanhada, e com essa edição que a Panini traz, no formato americano, com preço bacana e uma narrativa de peso, que exige um bom espírito crítico, mais ainda. Recomendamos pelo que já foi exposto no review, mas em especial, pelo questionamento de quem somos e para onde estamos indo.