Review| A garota da casa ao lado, de Jack Ketchum

Essa foi uma leitura daquelas que quando a gente fecha o livro não sabe muito o que dizer. Traz uma mistura enorme de sentimentos: Repulsa, perplexidade, nojo, medo. Ficamos perplexos pensando em como a maldade humana pode chegar no seu ápice. Já começo dizendo que é um livro para MAIORES DE 18 ANOS, por conter cenas fortes de violência,linguagem imprópria e abusos de todo tipo. Se você for uma pessoa sensível a esse tipo de leitura também não recomendo.  Farei minhas impressões e talvez libere alguns spoilers.

O livro começa com David,um garoto de 12 anos, e os seus amigos vizinhos, brincando , se divertindo como qualquer criança normal  da idade deles deve ser. Meg e Susan perderam seus pais em um trágico acidente onde foram as únicas sobreviventes. Susan, a irmã menor, ainda traz sequelas do acidente, ela não caminha muito bem e faz uso de muletas. Meg é uma menina linda, cheia de vida, e David logo fica fascinado com a beleza dela. Parece uma história inocente entre amigos. Mas a partir daí, a narrativa ganha contornos macabros.

Sem ter familiares as duas meninas acabam ficando sob a custódia de Ruth, uma mulher amargurada,  separada e mãe de três meninos: Donnie, Willie e de outro apelidado de Au au. Os três são criados sem muito amor, e cheios de permissividade para fazerem o que bem entenderem. A mãe, faz vista grossa.

David gosta da companhia de Meg, e ela , assim como o leitor é enganada. Achamos que David será um amigo com quem ela possa contar. Não podemos estar mais errados. Vindo de casamentos fracassados, a amargurada Ruth, resolve descontar na jovem Meg todas as suas frustrações  como mulher. E começa praticando pequenas agressões, que vão sendo vistas e toleradas por todas as crianças ali, incluindo David, que passa a frequentar cada vez mais a casa ao lado. Meg é xingada, agredida, enquanto todos riem, todos a humilham.  As agressões vão aumentando gradualmente, elevando o nível da maldade e das punições sofridas por Meg e impostas e orquestradas por Ruth. A mulher encoraja os filhos e até mesmo as crianças da vizinhança a maltratá-la, e cada um acaba sendo co-participante nesse cenário repugnante. Meg vai sendo submetida à empurrões, xingamentos, cintadas. Até que depois a coisa sai de controle e Ruth acaba aprisionando-a de vez no porão, onde a Lona desse circo de horrores começa a se formar. Ali, Meg será encarcerada e subjulgada a todo tipo de abuso, físico e psicológico. Os abusos vão de xingamentos e espancamentos, até estupros cometidos pelos adolescentes com o consentimento de Ruth, queimaduras de cigarros, banhos de água fervendo. Um verdadeiro horror! Às vezes as agressões são direcionadas a pequena e frágil Susan, irmã da Meg, que não é  também tratada com desprezo e assiste desesperada e impotente o espetáculo de horror que acontece com Meg no porão da  família Chandler. Tudo se passa ali bem diante de Susan,coisas pesadas que nenhuma criança deveria sonhar em presenciar.

Pensávamos que David teria empatia, seria o pequeno herói a salvar Meg (que já sabemos que fim terá nessa trama) mas ele nada faz. Parece fascinado não apenas com a beleza de Meg, mas também fascinado com o quanto podem fazê-la sofrer e até quando ela é capaz de aguentar. Para nossa revolta e incredulidade David não participa, mas fica de Voyeur, Observando a tudo sempre oscilando entre o certo e o errado, entre o que deveria fazer mas ao mesmo tempo aceitando estar ali. Não dá para entender se é por ele ter apenas 12 anos, ou se por lealdade aos amigos, ou por que ele é sádico mesmo. A empatia dele só brota no final. Quando quase já não há mais o que fazer por Meg.

É uma leitura brutal. Acho que eu não lia nada tão real e pesado desde “diário de uma escrava” . O livro me lembrou também  ” Quando os Adams saíram de férias”, tem uma história semelhante onde crianças abusam de uma babá. O livro traz questões importantes sobre como era a sociedade na época, década de 60. O machismo, a religião, os gritos de socorro que Meg tentou fazer alguém ouvir e não foi ouvida.  Segundo os religiosos, ela deveria respeitar quem a criava e se ela apanhava era por que merecia, os pais ou tutores que sabiam o que era melhor para os filhos. A polícia a mesma coisa, a passada de pano, a vista grossa. Ainda vemos muito disso hoje infelizmente, os casos de feminicídio e cárcere privado de mulheres não para de aumentar.

O livro, escrito em 1989, ganhou adaptação cinematográfica de mesmo nome em 2007.

Essa é mais uma edição da coleção Macabra da Darkside Books. Traz uma introdução  escrita por Stephen King e no final mais dois contos inéditos de Jack Ketchum, autor do livro. É brutal, é cortante, a crueza dos detalhes relatados aqui impressiona. É triste saber que este foi um caso real. Um livro baseado no caso de Sylvia Likens, que chocou e comoveu os EUA na década de 60 e inspirou o processo criativo desse livro. Vamos lendo e parando para respirar, apesar da leitura ser fluida ao mesmo tempo é tensa e muito perturbadora. Fico pensando em quantas Meg´s ainda existem por aí, quantas pessoas são encontradas mesmo nessa situação angustiante e degradante. Elas podem estar em todos os lugares  aprisionadas, lutando com seus algozes, precisando de socorro.No exterior, aqui mesmo no nosso país, ou bem ali…

Na casa ao lado.